Vive-se um período de grande esperança; na melhora econômica, no incremento dos negócios, de intenso combate à corrupção. Mas a suposta “Esperança” tem uma moeda de troca perversa. Ela não é como a alegria, que quanto mais se estimula, menor será a tristeza; nem mesmo atende-se ao conluio da felicidade, que, em teoria, se opõe à infelicidade. Esse “esperar” de algo ou de alguém fomenta um sarcasmo beckettiano: esta nasce nas entranhas da carência no presente, na ausência de resposta ou solução para o momento. Tenho esperança num futuro melhor porque não a tenho hoje. Em suma, altas doses do remédio da esperança significam também grandes temores de que o desejo não de realize. Expectativas e frustrações, pura e simples.


E é nesse instante em que os super-heróis entram em cena. Ao contrário da suposta crítica rasa à magia e estudo mitológico que tais figuras podem fomentar no imaginário cotidiano (relevante e rica, em vários aspectos), a minha preocupação se insere no seguinte pressuposto: necessitamos cada vez mais nos identificarmos religiosamente com as figuras de super-heróis porque estamos num momento de desespero. Não temos a mínima noção do que queremos ou até mesmo de quem somos. Emocionamo-nos com as decisões de Thor, de um Capitão América e uma Mulher Maravilha, pois estes são deuses (produzidos pela ciência ou de origem cósmico-divina) que decidirão pelo bem da humanidade, trazendo a bondade, o amor e inspirando virtudes morais para uma população sofredora. Um Esperança Alada enfim. Nos anos de Stan Lee e Jack Kirby, ao menos tínhamos o testemunho de um Zeitgeist empírico (Guerra do Vietnã, os Black Powers, os direitos das mulheres, a Guerra Fria, as ditaduras, a discussão sobre os direitos humanos - ou seja, a expressão artística de uma necessidade latente à dinâmica do próprio homem). Temos o mesmo hoje? O Superman atual é o mesmo ser, com premissas similares? Ou esse de agora está mais para um Aquaman niilista tentando se salvar de um mundo deveras líquido? Em resumo, o que espera o ser humano ao repaginar esses super-heróis? Apenas passatempo? Um escape lúdico? Ou indulto místico-religioso travestido de entretenimento familiar?


Para não irritar em demasia o impaciente leitor que busca o tema Kan Yu, o que há em comum entre o que foi discorrido até aqui com o bendito Feng Shui (sobretudo o Tradicional)? Muita coisa, mas, para tanto, é necessário falarmos um pouco sobre terapias alternativas nos recentes anos. A fila da metafísica anda rápido, e a cada década uma fórmula de harmonia energético-espiritual-global se fundamenta como solução para combater o inimigo da vez. Até os anos 90, a PNL (Programação Neurolinguística) era o SHT (Super-herói Terapêutico), “avohai” dos heróis Autoajuda e Automotivação. Nos idos dos anos 2000, a TVP (Terapia de Vidas Passadas) resgatava as técnicas de regressão anteriores e adaptava ao mercado. E como não poderia deixar de ser, a roda terapêutica continuou a girar, mas agora mais rápido e numa escala nunca imaginada anteriormente em termos de pretensão (talvez apenas nos sonhos dos Super-heróis e Vilões dos quadrinhos).


Um exemplo contemporâneo é a parte da TVP que foi assimilada nas teorias morais da AC (Astrologia Cármica) e que se alinham, ao menos em alguns fundamentos, na nova LJT (Liga da Justiça Terapêutica) denominada como Constelação Familiar. Naturalmente, a crítica não se refere à eficácia do sistema (em alguns casos até muito evidente), mas na amplitude supra-humana do processo, do resgate, da “limpeza”, da solução pela catarse e abnegação, mas sem necessariamente se ater a alguns fundamentos elementares da psicologia analítica, como o conceito de arquétipo, o que poderia evitar uma peculiaridade que se repara em alguns desses trabalhos na atualidade: “constela-se” muito e cada vez mais, intensamente, processos que supostamente foram já “libertados”, mas que continuam a serem transferidos, arquetipicamente, para outras figuras de controle e submissão do nosso cotidiano. Um outro exemplo (a meu ver a mais enfática representação dos super-heróis pós-modernos, o VTBE – os Vingadores da Terapia em Bem-Estar) é o que se chama atualmente de Coaching, uma cosmogonia do indivíduo pleno que sabe o que quer e onde deseja chegar. Refiro-me ao Avengers, pois esse grupo de temáticas “wonders” abarca quase tudo, da Física dos Multiversos ou nesse caso, UQ – Utilitarismo Quântico, até o mais profundo dos aprendizados conscienciais, a EE – Espiritualidade Empreendedora, onde mantras como cocriação e gratidão são evocadas a cada passo do “pensene positivo mindfullnessiano” (pensamento-sentimento-energia da abundância). Sua função: vencer o ignóbil Thanos, o demônio do fracasso pessoal e da anomia do sujeito (falta de sentido e significado da vida). Irônico, ao menos.


Calma, falaremos finalmente de Feng Shui. E este não foge à nenhuma das regras, aliás renasceu em meio fervoroso no ocidente, numa época de PNLs, esoterismos orientais, de meditação escapista, de exaltação por gurus, pela busca de super-heróis transcendentais aromatizados com Nag Champa. A versão moderna (re)cunhou o sobrenome, (re)nomeando-o como Chapéu Preto (Black Hat Sect) e a sua mística incluía iniciações, magias e elementos de consagração ancorados na estética decorativa. Esse deus-herói reforça a pergunta “O que você quer?” (alguém se lembra dos Shadows, na série Babylon 5?), e o iniciado tinha a palavra para purificar, ativar, fazer acontecer, e talvez por condição “sino-agostiniano”, torcer para que tal benção fosse repassada ou assimilada pela família ou usuário em crise. No Feng Shui Clássico, a mítica sempre foi a do avesso: expertise era a representação do mistério taoista, da técnica milenar chinesa, do grau preciso de uma Luo Pan com centenas de anéis impossíveis de se decifrar, um sofismo tão complexo que até mesmo os pesquisadores não entendiam bem o que divulgavam ou defendiam, mas os teoremas nos pergaminhos, ah, esses sim provavelmente falavam por si mesmos. Os super-heróis, portanto, eram (e são ainda) os mestres decodificadores, aqueles que detém a tradição secreta, a ordem ancestral das coisas. Ensino como Insígnia, hierarquia básica.
E o que se propõe, portanto, uma destruição dos SH (super-heróis), das suas ligas e adjuntos, assim como se mostra na nova série The Boys (Amazon Prime)? Ou não temos como fugir ou nos salvar dessa guerra dos deuses, e assim devemos segui-los (sendo consequência das escolhas e caprichos dos mesmos – pois assim é o mundo), como apresentado na funesta-bela obra Watchmen, de Allan Moore e Dave Gibbons? É possível afirmar uma vida como obra de arte realmente, mas sem ser engolido pela angústia, consolidar um existir antecipado à essência (costumeiramente fundamentada por SH crísticos) em que o pequeno homem vislumbrado em curas vindas de Ave Marias e Estrelas Voadoras pode, pouco a pouco, se renovar como participante ativo, mas sem se alienar numa VTBE ou esperar por uma salvação fengshuística? Diria que sim, ao incorporar o nomadismo existencial. E por falar em Feng Shui, habitação e território, refiro-me à luta nômade como uma ética do desapego, da modificação de si mesmo, da arte corajosa em desterritorializar sistemas de defesa internas sem sentido, hábitos de segurança nocivos e clamores por deuses-heróis ou LJTs como garantias de purificação. É preciso limpar o terreno, assumir a morte desse morador-EU-covarde como fundamento de processo, é necessário ser um ASH de mãos intactas (Anti-Super-Herói em si mesmo) e aguentar o choque das incertezas, para só então reterritorializar o ambiente, fazer funcionar a técnica, o método, que a partir desse instante incorporará a arte, a sensibilidade do AHSSH (Além do Homem sem super-homens), este mais leve do que o próprio sistema dos Ventos e das Águas. Desta feita, e adaptando a indagação de cunho foucault-deleuziano, “é necessário um pouco de possível, senão me sufoco”, acrescentaria que “é necessário um pouco de possível (pelas consequências das escolhas feitas por esse homem minimamente autônomo), senão me sufoco (pelo excesso de veneno dos SH que querem o meu bem)”. Gratidão, pelo menos? Não, obrigado...


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